Pode ser interessante para o debate sobre o vinho brasileiro
observar o que ocorre fora daqui, em lugares onde as videiras florescem há mais
de dez séculos. Lugares onde beber vinho e conversar sobre vinho não é uma
afetação, mas um agradável espaço de vida. Devo a Antônio Goulart, meu amigo e
antigo colega de jornal, a leitura do livro “Célébrations” com preciosos
ensaios do escritor francês Michel Tournier, da Academia Goncourt. Destaco uma
passagem que chamou a atenção do Goulart, e que vale ser transcrita:
“A França é o único
país onde o vinho não é um luxo, mas o acompanhamento obrigatório de toda
refeição. Na minha cidade de Côte d’Or as pessoas morrem com cem anos sem haver
bebido uma só gota de água pura. Simplesmente a água não é um líquido potável,
ela é feita para a gente se lavar e para regar as flores. Bebê-la é um ato
selvagem que não prenuncia nada de bom. Na Borgonha, o bebedor de água é
suspeito de predisposição ao rancor e à intolerância. Durante toda a minha
infância me alertavam para o perigo de ‘afogar o estômago’, ficando bem
entendido que só a água afoga.”
Essa amável ironia, reveladora de uma relação amorosa com o
vinho, é sugestiva: nada, ou pouco adianta a melhor tecnologia, se o vinho não
fizer parte da vida das pessoas, isto é, do chamado público alvo. Já se disse
aqui neste espaço que o medo é um dos
obstáculos à ampliação do consumo de vinho no Brasil. Os entendidos
encarregaram-se de criar uma trincheira intransponível entre os consumidores e
o vinho. Para beber seria necessário um copo especial, uma ocasião especial e,
acima de tudo, um mínimo de conhecimentos técnicos: para isso, proliferam os
cursos que ensinam os consumidores a abrir caminho na espessa névoa de sua
ignorância, para compreenderem o que estão bebendo, para saberem que rótulos
devem acompanhar suas refeições, sem dar vexame.
Será que este vinho tem aroma de pêssego
ou de couro molhado?
Gosto de lembrar Chesterton que, com a benevolência e também
com o humor cortante do Padre Brown, acreditava que cometemos um erro quando
pensamos ignorar algo só porque somos incapazes de defini-lo. Jorge Luis Borges
dizia que sabemos o que é a poesia, sabemos tão bem que não podemos defini-la,
da mesma forma que somos incapazes de definir o sabor do vinho ou do café,
assim como também parece impossível reduzir a palavras a cor amarela ou
vermelha, o significado da ira, o amor, o ódio, o amanhecer, o crepúsculo. A
variedade de sensações que cada pessoa é capaz de retirar de um copo de vinho,
ainda escutando Borges, não é infinita, mas assombra a imaginação.